CRÔNICA DO INÍCIO E DO INÍCIO DO MEIO
Primeiro capítulo de Sayuri
Para você ter um gostinho do livro
Primeiro capítulo de Sayuri
Para você ter um gostinho do livro
Hoje, na manhã de mais um aniversário que celebramos juntos, acordei pensando em você e no que temos vivido. Meus olhos marejam com as lembranças do que vivemos até agora.
Conhecemo-nos através de um site de encontros, o “teprocurando”, hoje desaparecido, engolido que foi pelo Facebook e aplicativos modernos, como o Tinder. Conversávamos quase diariamente pelo MSN até combinarmos um encontro. O primeiro foi no estacionamento do Carrefour na Marginal Pinheiros. Estacionei o carro alugado e caminhei até você. Você abriu a porta do Ford Fiesta preto e, sem sair dele, seus olhos encontraram os meus. De pé, observei seu rosto pela primeira vez fora da tela do computador. O que vi me agradou de imediato. Os cabelos lisos, grossos, típicos de orientais, desciam até os ombros e emolduravam o sorriso lindo pontuado por duas covinhas. Seu olhar era desconfiado, cheio de dúvidas: “Quem é esse cara? Onde estou me metendo?”. Apesar dos receios e curiosidades, seu olhar era doce, tímido, meigo, e inspirava confiança. “Aonde vamos?” foi sua pergunta. Aleguei não conhecer a região e por isso não saberia escolher aonde ir. Você decidiu por um restaurante próximo. Fui no meu carro, você no seu. Chegamos, e ao sentarmos você sorriu. Não resisti e, antes de me sentar, com os dedos indicador e mindinho da mão esquerda toquei as duas covinhas e falei: “Olha essas covinhas. Que lindas!”. Seu semblante se acanhou ainda mais. O jantar transcorreu agradável. Conversávamos amenidades e seu olhar penetrante tentava avaliar a sinceridade das palavras, os riscos e ameaças que eu poderia representar. Na saída a acompanhei ao Fiesta estacionado do outro lado da rua. O beijo aconteceu antes de você abrir a porta do carro. Foi intenso e logo você me convidou a entrar. Não queria ficar só num beijo de despedida e nem dar espetáculo no meio da rua. O que se seguiu está gravado na minha memória: nosso primeiro “amasso”. Os gemidos e respiração ofegante revelaram muito mais sobre você do que nossa conversa entre garfadas de espaguete minutos antes. Marcamos para sair na semana seguinte. Na quinta-feira, o primeiro encontro de verdade. Você marcou no estacionamento do Walmart na Washington Luís. Fui com o meu Gurgel com capota de lona, coberto de adesivos. Você chegou com o Fiesta preto e o estacionou numa vaga atrás da minha. Seu olhar não esboçou nenhuma estranheza ao ver meu carro, no mínimo sui generis. Entrou nele sem delongas, de bom humor. Meio sem jeito, eu não sabia o que sugerir. Estava acanhado, inseguro, incerto do que fazer. Pensava com meus botões: “Que faço? Sugiro jantar em algum lugar?”, “ir direto a um motel?”. Qual a origem de minha timidez? Simples, não queria cometer uma gafe que pudesse melindrá-la e quem sabe estragar o encontro. Talvez você tenha notado meu acanhamento, talvez não, mas sua atitude decidida revelou o tipo de mulher que estava sentada a meu lado. Antes que eu pudesse abrir a boca e sugerir qualquer coisa, com voz segura, sem nenhuma sombra de dúvida, você disse: “Vamos a um motel”. Pronto, resolvido! Não se fez de rogada, não fingiu recato, nem aguardou a decisão do homem. Pensei: “Adorei! Ela sabe o que quer”! Ufa! O desejo de deitar com você, de conhecê-la melhor — que eu havia alimentado desde o primeiro encontro — iria ser atendido. Feliz da vida, segui sua orientação e dirigi meu Gurgelzinho sacolejante a um Motel na Avenida Robert Kennedy, hoje Avenida Atlântica. Memórias Às memórias de nosso princípio se juntam lembranças de tantas noites maravilhosas em motéis vários, das inúmeras conversas noturnas pelo telefone fixo, de suas lamentações sobre o Roberto, um de seus “amigos”. Para nossos próximos encontros você sugeriu o Motel Ouro Verde, na Av. Washington Luís, por ser mais bem localizado para ambos em termos de tráfego e distância. Fizemos dele nosso ponto de encontro habitual. Não demorou muito para você começar a revelar mais de si. Contou do divórcio, das lutas após a separação, das frustrações no emprego, da lida com as crianças. Eu escutava tudo com uma mistura de curiosidade, admiração e avidez por saber mais de você. Eu me perguntava se esse “abrir seus segredos para mim” era porque me considerava alguém especial, digno de confiança ou se você fazia o mesmo com seus outros “ficantes”. A primeira hipótese me alegrava, mas como poderia eu ter certeza? Nesse período, há vários episódios dignos de nota, como aquele em que estávamos em “nosso” motel e o Roberto ligou. Enquanto você conversava com ele eu a esperei lendo placidamente a revista que sempre carrego. E aquela vez em que fiquei esperando e você se atrasou por alguma razão. Quando chegou, me surpreendeu nua por baixo de uma capa de chuva. Explicou a surpresa com um sorriso ao mesmo tempo singelo e maroto: “Tava muito atrasada, precisava me redimir”. À medida que o tempo passava, sua confiança e nível de conforto comigo aumentavam. Assim, as conversas foram adquirindo um caráter mais íntimo, avançando por terrenos mais delicados. Você começou a fazer perguntas pouco convencionais. Por exemplo, “você já transou com duas mulheres?”, “já foi a clubes de swing?”. Como a maioria das pessoas, você tinha curiosidades, a diferença foi que teve coragem de perguntar. Encantamento Muito em você me atraía. Estar ao seu lado era muito agradável. Sua presença calma, seu sorriso franco, seu olhar, seu senso de humor. Sua beleza física. A maneira de fazer amor. Mas, principalmente, seu espírito, sua ingenuidade e inteligência. Em meio às outras com quem eu saía na época, você se diferenciava. Uma Mulher assim mesmo, com “M” maiúsculo. |
Você não posava de recatada. Não fingia pudores. Sua resposta a uma pergunta que fiz ilustra bem sua clareza de propósito: “Se for pra fazer, tem que fazer bem feito. Não venho a um motel pra ficar com frescuras”. Você era transparente, nunca utilizou artimanhas nem subterfúgios de sedução e conquista. Não tinha vergonha de gostar de transar nem de gozar. Sabia como poucas usufruir o sexo sem limites.
De espaçadas, nossas saídas foram ficando mais frequentes. Conforme o tempo passava, você foi me encantando. Percebi que queria estar com você, queria sua companhia, queria ter você mais próximo. Você deixou de ser apenas uma parceira eventual. Com paciência comecei a cultivá-la: comecei a convidá-la a restaurantes, cinemas e passeios. Acompanhei-a durante uma consulta médica; você preocupada com o diagnóstico. Lembro-me da ousada visita natalina à casa de sua irmã. Fui até lá com a desculpa de levar seu presente de aniversário. Toquei a campainha. Você me viu e, como sempre transparente, seu semblante mostrou ao mesmo tempo surpresa, contentamento e constrangimento. Sua família não me deu a mínima atenção. Não me importei. Meu objetivo era conhecer um pouco mais de você e do seu ambiente familiar. Nesse mesmo ano celebramos meu primeiro aniversário juntos. Fomos ao Bar Dois Irmãos na Rua Demóstenes, 55. Ambos ainda “ficávamos” com “amigas” e “amigos” vários e eu me divertia ouvindo suas histórias. A partir daquele, temos celebrado juntos nossos respectivos aniversários, o que espero continuar fazendo por muitos anos. E daqui para frente? Mais importante que celebrar datas, oxalá possamos continuar a viver como temos vivido até agora. Quebrando moldes, rompendo convenções, celebrando a vida e criando memórias para recordar no inverno da vida. A respeito de moldes, você quebrou todos. Quando seu marido arruinou o casamento, você não buscou a proteção de outro. Você escolheu um caminho diferente, muito mais difícil. Quis se libertar das convenções que impõem à mulher certos comportamentos e asseguram ao homem a primazia nas relações. Você lutou e venceu! Hoje, você é dona de seu próprio corpo e mente. É livre, pode fazer o que quiser, quando quiser. Alguns fantasmas ainda a aporrinham, mas tenho total confiança de que vai se livrar deles em seu próprio tempo. E esteja segura de que sempre terá meu apoio. Reconheço que viver comigo não é fácil. Ojeriza pela rotina e meu jeito pouco convencional de ser e pensar complicam as coisas. E a lista de desafios a que a submeti não foi curta. O mérito por ainda estarmos juntos e termos tido sucesso em nossa relação, é todo seu. Aturou esquisitices, enfrentou desafios, venceu medos e inseguranças. Uma única nuvem paira sobre nós: o ciúme que, inexplicavelmente, de vez em quando põe a cabecinha de fora e interfere em nossa harmonia. Os anos voaram. Temos uma história rica, com paz, harmonia, carinho. As poucas crises que tivemos foram de curtíssima duração. Oxalá nossa vida continue sendo de sucesso: com sabor, com sal e pimenta, bem temperada com desafios. A continuidade depende apenas de nós mesmos, das atitudes que adotarmos daqui para frente. Se não prestarmos atenção, rotina e inércia vencem, medos e inseguranças interferem, confiança mútua cede terreno à desconfiança. Se permitirmos que essas coisas aconteçam, nossa relação vai se esclerosar. Não quero arriscar esse destino; seria o começo do fim. Este momento, não é o princípio do fim. É o início do meio. ◊◊◊ — Quando recebi essa sua carta pelo correio, fiquei duplamente surpresa. Escrever cartas está tão fora de moda! Mas, depois que a li... Nossa! Se você queria me emocionar, conseguiu. Não pude conter as lágrimas. Só podia pensar: “Será que mereço essas palavras?”. Que presentão! — Mais do que merece. Queria expressar o que você significa para mim de uma forma que não conseguiria com presentes costumeiros — perfumes, roupas, joias. — Para! Quer me fazer chorar aqui na frente de todo mundo? — Você lembra que neste bar celebramos juntos pela primeira vez meu aniversário? Notou que estamos na mesma mesa? — Lembrei-me do bar. Não da mesa. Que memória! — Pois é. Vir aqui depois de tantos anos simboliza a estabilidade de nossa união. — Você me emociona. — Rssss. Quero fazer um pedido. Por favor, me conta sua história. Quero muito saber como você se tornou a mulher admirável que é hoje. — Aqui, agora? — Ué, por que não? Tá com pressa? Tem algum lugar pra ir? — Claro que não. A que horas o Dois Irmãos fecha? Rssss. — Temos todo o tempo do mundo. Sou todo ouvidos. Começa. |