REALIDADE
Primeiro capítulo de Chloe
Leia para ter um gostinho do livro
Primeiro capítulo de Chloe
Leia para ter um gostinho do livro
Eu me sentia sufocada, prisioneira em uma armadilha sem saída. Estava em um túnel tateando no escuro; claustrofóbica, sem rumo. Tentei muitas vezes conversar com meu marido, mas ele me ignorava, desdenhava, não me dava atenção. Tentei desabafar com minha mãe e minhas irmãs, e também fui rechaçada. Com uma pitada de incredulidade na voz diziam:
“Você tem a vida perfeita”. “Aos trinta e dois anos de idade você conseguiu sucesso na profissão e independência financeira”. “Do que se queixa? Você tem tudo que poderia almejar: bom emprego, marido trabalhador, filho lindo, saudável, carro próprio, um lindo apartamento de três quartos no Klabin, ótimo bairro da capital de São Paulo, boa vizinhança, edifício elegante com piscina, área de lazer completa e tudo o mais”. “Você tem o que muitas almejam, mas poucas alcançam”. “Reclama de quê?”. Verdade, tenho tudo isso, mas esse “tudo” apenas arranha a superfície de minha existência e de quem sou. Por que estou infeliz? Por que acordo no meio da noite e rolo na cama insatisfeita? Por que, sozinha no carro, presa no trânsito caótico de São Paulo, reprimo lágrimas que teimam em aflorar? Antes alegre, passei a fingir alegria; antes fogosa, passei a fingir orgasmos. O que me aflige? Aterroriza-me pensar que, com apenas seis anos, meu casamento já se assemelhe ao de casais mais velhos, como o de meus pais, tios e avós. Casais fraternos que encontram satisfação em deitarem na mesma cama, dormirem juntos de costas um para o outro. Assim estamos Daniel e eu. Sexo, de quase diário passou a semanal; de semanal a quinzenal; daí para esporádico. E quando acontece, cadê o fervor de antigamente? Pouco antes de dormir, se nosso filho está dormindo e não existe chance de ele acordar, fazemos rápido, cumprimos tabela. Ter vontade ou não, estar a fim ou não, é irrelevante. Afinal, estamos casados, temos tempo de sobra; podemos adiar o prazer, deixar para amanhã o carinho frustrado de hoje. As pessoas acham natural esse estado de coisas; se acomodam. Eu não. Eu ambiciono mais da minha existência e de meu matrimônio. Talvez eu almeje uma quimera inexistente, mas que mal há em querer mais? Antes de casarmos meu marido tinha desejo por mim e na cama me satisfazia. Talvez por isso eu não tenha enxergado suas limitações. Como o sol que durante o dia ofusca as estrelas, no namoro o sexo escondia o que ele não é. Eu não o enxergava. Era ele esse homem hoje tão ausente? Esse homem de sentimentos rasos? Sem romantismo? Incapaz de carinhos espontâneos? De demonstrar amor? Era ele esse homem desatento? Tão distante? Ou estava eu cega pelo desejo de ser mãe, de constituir família? No namoro os momentos juntos eram planejados e com hora marcada; tudo era luz e alegria. A demanda mais urgente era “o que vamos fazer neste fim de semana” e qualquer que fosse o programa: balada, cinema, restaurante, festas — de família ou não — a noitada, na maioria das vezes, terminava em algum motel. Eu me preparava para a noite, me vestia, me embonecava, saía disposta a mostrar o melhor de mim em todas as situações e ao final proporcionar a ele a melhor trepada de sua vida. Ele certamente fazia o mesmo: se preparava mentalmente para se superar e me levar a orgasmos retumbantes. As rusgas ocasionais não tiravam o brilho de nossa relação. Nesse período nos esforçávamos para sermos os melhores. Competíamos com nós mesmos e com nossos respectivos passados. Eu procurava mostrar que era a melhor mulher que ele já teve; que nenhuma das suas ex-namoradas poderia me superar em nenhuma atividade, nem socialmente com seus amigos e família, e muito menos na cama. E vice-versa: ele queria provar a todos ao nosso redor ser o homem mais simpático e cordato. E na cama, o melhor, o mais gostoso e potente que qualquer outro anterior a ele. Esse cenário artificial simplificava. A imagem idealizada que construímos nem de longe se assemelhava às pessoas que somos. Não percebíamos que a vida que vivíamos estava anos-luz da realidade que viveríamos sob o mesmo teto. Cegos pela ilusão assim criada, nós nos convencemos de que finalmente tínhamos encontrado nosso par ideal; nossa cara-metade; nossa alma gêmea. Movidos pelo desejo de constituir família, ter filhos, e de continuar as tradições que recebemos de nossos pais, ele me propôs casamento e eu, feliz, aceitei, imbuída da certeza que somente a ingenuidade juvenil garante. Nossos corações acalentados pelo sonho muitas vezes sonhado, felizes, embriagados pelo imaginário que nos unia, impulsionados pelos hormônios em ebulição, pela ânsia de ter filhos e assegurar a continuidade familiar; encorajados por nossas respectivas famílias não avaliamos com clareza o futuro cônjuge nem a realidade em que estávamos prestes a mergulhar. Iludidos pela imagem simplista que tínhamos um do outro, com o coração repleto de felicidade e calor mergulhamos de cabeça. |
Enfim, iríamos viver sob o mesmo teto, felizes para sempre como nos contos lidos e relidos. Finalmente seríamos donos dos próprios narizes e de nossos destinos. Daqui para frente nada iria nos atrapalhar. Livres do jugo das regras, horários e horas marcadas impostas de fora, e das ingerências familiares, finalmente iríamos construir nosso próprio lar, viver nossos sonhos. Todos os dias seriam um mar de rosas; todos os dias memoráveis trepadas e orgasmos extasiantes.
Só que... A vida sob o mesmo teto revela pessoas bem diferentes das idealizadas no namoro. Gradualmente descobrimos no cônjuge facetas desconhecidas; outras características vêm à tona. Com o tempo, a maquiagem some, os sonhos se transformam em realidade, os mistérios deixam de ser. Hoje vejo meu marido sob uma ótica mais realista, menos idealizada. Dou-me conta de que ele me vê apenas no papel bidimensional a mim destinado por tradições e costumes milenares: esposa e mãe. Não vê o ser humano além. Absorto em seu próprio mundo não sabe nada de mim, do que eu gosto e não gosto, do que quero ou de meus objetivos. Não enxerga meu íntimo complexo, multidimensional. Não percebe que tenho sonhos, desejos, fantasias, ambições, inquietudes. Sou romântica, preciso me sentir amada, cobiçada, desejada. Ausente, ele não nota minha sede, pouco me procura. Não manifesta nem por palavras nem por atos o que sente por mim, o que eu represento para ele, o que significa estarmos e sermos casados. Sua atenção se manifesta somente em datas programadas, como dia das mães, Natal, dia dos namorados, aniversários. Embora gestos nessas datas sejam importantes, mesmo quando grandiosos eles são insuficientes para matar minha sede. É como deixar de regar um vaso de flores por semanas a fio e de repente encharcá-lo com um balde d’água. Não funciona, a flor definha, morre afogada. O amor se nutre de pequenos gestos espontâneos de carinho: um toque no braço; o deslizar inesperado de dedos na bochecha; perguntas do tipo “como foi seu dia?”, “como está se sentindo?”; telefonemas no meio da tarde só para dizer “Oi. Te amo”. Esses gestos simples atingem mais fundo. Pequenas atenções dessa natureza nutrem a parceria, elevam a alma, acalentam o coração, revigoram nosso ser, asseguram que somos queridos, que somos importantes. Singelas expressões de carinho mostram que, por mais difíceis que pareçam os obstáculos, por mais dura que a vida esteja, podemos contar com nosso parceiro, o sentimento que nos uniu continua vivo, forte e resistente. Em suma, a somatória de gestos simples é o adubo que nutre a relação. Todas as vezes que tentei conversar com o Daniel sobre nós, nosso relacionamento, sobre mim, como me sinto, meus objetivos e as coisas que me perturbam, ele desdenhava: — Lá vem você discutir relação. Está tudo bem. Para que complicar as coisas? Como mulher gosta de complicar! Sua recusa em me levar a sério, em reconhecer os problemas e discutir onde estávamos no matrimônio e no relacionamento, me entristecia muito. Seu descaso alimentava minha insatisfação. Sua indiferença me deixava faminta e sedenta de atenção e carinho. Contudo, poderia ser eu a causa de meu próprio dissabor? Meu senso de justiça me induzia a questionar: “Estou sendo injusta?”, “exigente demais?”, “colocando minhas expectativas e vontades em níveis irreais?”, “não seria melhor aprender a conviver com as deficiências do Daniel?”, “será injusto exigir dele o que ele não é?”, “será que deveria me resignar aos papéis de mãe e esposa para os quais fui criada?”, “será que sou egoísta por não me limitar ao que todos esperam de mim?”. Consequentemente, dois fardos se acumulavam em meus ombros: um causado pela indiferença dele e o outro pelo meu autoquestionamento. Isso tudo combinado solapava minhas energias. Deixei de ser aquela pessoa alegre de antes, me tornei sisuda, triste, mal-humorada. A realidade de meu casamento me sufocava e deprimia. Não sabia o que fazer. Sentia-me ao mesmo tempo incapaz, triste, pessimista. Estava infeliz, me sentia sozinha, sem ninguém com quem desabafar. Meu marido, em vez de ajudar, rejeitava minhas tentativas de conversar. Incapaz de sacudi-lo de sua apatia ou de sensibilizá-lo, me sentia num beco sem saída, sem saber o que fazer. Se continuasse nessa espiral, poderia entrar em depressão, surtar, sei lá. De repente, no auge do desespero, o destino ofereceu uma alternativa providencial, uma luz no fim do que parecia um túnel escuro sem saída. |